Spaghetti, dulce de leche e feijoada: o Tempra brasileiro que está completando 30 anos era uma mistura bem peculiar Por Renato os (*) Belo Horizonte é um lugar peculiar. Muitos dizem que é a maior roça do Brasil, permeado por locais cosmopolitas e de gente pensante. Para mim, um lugar apaixonante. E, como tradicionalmente visto no Autos Segredos, uma vista comum são os protótipos da Fiat que cortam a cidade nos mais diversos testes realizados pelo fabricante. VEJA TAMBÉM: CONFIRA A PRIMEIRA MATÉRIA SOBRE A HISTÓRIA DO TEMPRA NO BRASIL Foto | Fiat/Divulgação E foi na capital de todos os mineiros, já no finalzinho dos anos 1980, que uma estranha visão nesse contexto começava a ser verificada: afinal, que carro é esse sendo testado de porte mais avantajado que os tradicionais Fiat pequenos e racionais? Pior ainda: que Fiat estranho é esse sedan, insosso e do porte de um Monza ou de um Santana? A despeito das históricas placas de teste ainda de duas letras “FB” antecedendo os quatro números, aquele sedan desengonçado não tinha cara de anos 90. Não mesmo. Quem era ele? O que ele fazia ali? E qual protótipo rodava pelas montanhas de Minas? Perguntas que seriam respondidas no decorrer do ano de 1991. Foto | Fiat/Divulgação Nem tudo é o que parece ser A data era 19 de fevereiro do ano supracitado. Era lançada, nos Estados Unidos, a música Losing My Religion da banda de rock alternativo R.E.M. Sucesso nas paradas do mundo inteiro e um clássico do rock, o título da música refere-se a uma expressão utilizada no sul do país Yankee para expressar quando alguém perdeu a sua fé. Entretanto, conforme o próprio autor da canção, a música fala sobre um amor não correspondido. Embora, evidentemente, o nome da música leve para um entendimento inicialmente distinto. “E o que isso tem de correlação com carros e sedãs da Fiat?”, você pode se perguntar. A questão é que o que ocorria intramuros da planta de Betim era algo bem parecido com o que ocorre em Losing My Religion. Em agosto daquele mesmo ano, com direito a lançamento no Caribe, era apresentado para a imprensa brasileira o Fiat Tempra, sedã como o que fora demonstrado na parte 1 desta matéria. Entretanto, nem tudo era como parecia ser: lembra-se do sedã sem sal que era visto junto de outros veículos de teste? Bem, ele era o Fiat Regata – o antecessor direto do Tempra e produzido na Argentina até aquele momento. Foto | Fiat/Divulgação - Fiat Tempra 30 anos: Regata cedeu sua arquitetura para o sedã médio brasileiro E embora pareça ser praticamente idêntico a seu correspondente italiano, o Tempra brasileiro era a roupa do modelo italiano instalado sobre seu antecessor ítalo-argentino. Sim: embora a roupa fosse nova, por baixo a estrutura era a do Regata, com adaptações e reforços para enfrentar o mercado brasileiro. E o jogo de adaptações não parava aí. Testes demonstravam que a suspensão traseira do Regata e mesmo a do Tempra europeu não lidaria bem com a severidade dos pisos brasileiros, comumente em péssimo estado naquela década que se iniciava. Foto | Fiat/Divulgação - Fiat Tempra 30 anos: Croma cedeu suspensão traseira para o modelo médio A resolução, por sua vez, encontrava-se do outro lado do oceano: como citamos anteriormente, o Tempra tinha um irmão maior, o tipo quattro. Ou, comercialmente, o Fiat Croma – com correspondentes na Lancia, Alfa Romeo e Saab. E com exceção do modelo sueco, que optou por sistema diferente, dos três modelos restantes é que viria a suspensão traseira considerada adequada para o Tempra brasileiro: saia um modelo independente por braços arrastados e entrava um modelo Mherson, também independente. Foto | Fiat/Divulgação Cara bonita e muitas inovações E assim chegava ao mercado já no final de 1991 o Tempra brasileiro: um Regata com roupa nova e suspensão do irmão maior. Inicialmente disponível em duas versões, Ouro e básica (que o mercado convencionou a chamar de Prata), a beleza do três-volumes era seu principal atrativo. Em termos visuais, alguns itens o diferenciavam frente ao modelo europeu: retrovisores, alojamento da placa traseira e abertura do porta-malas eram diferentes e mais elegantes. Por outro lado, as luzes de direção nos para-lamas eram glosadas na nacionalização do modelo. Ainda do lado de fora, se mostrava peculiar a saída de escapamento voltada para a esquerda graças ao sistema de renovação de ar do habitáculo que o extraía atrás do para-choque traseiro. O coeficiente aerodinâmico também subia de 0,32 para 0,28 frente à versão do velho continente. Foto | Fiat/Divulgação - Tempra está completando 30 anos de lançamento no Brasil Tal piora se dava pela maior altura de rodagem exigida em nosso país, obtidas também através do uso de pneus mais altos (185/65 R14) aliados a belas rodas de 14 polegadas com face usinada que embelezavam ainda mais o visual externo. Ainda no campo da aerodinâmica, detalhes como vidros rentes à carroceria, portas avançando sobre o teto e capô que ocultava em parte os limpadores de para-brisa traziam um ar de modernidade que facilmente confrontava seus concorrentes. Em 1991, a concorrência mostrava-se agitada independente da chegada do Fiat médio: o Chevrolet Monza fora então recém-reestilizado naquele momento, mas sem maiores alterações na seção central da carroceria. https://www.youtube.com/watch?v=K_KRwhsCJS8 Esse expediente também adotado pelo Volkswagen Santana redesenhado naquele ano e agora dotado de contraparte na Autolatina – o Ford Versailles. Por fim, a invasão dos modelos importados após a abertura do mercado nacional no ano anterior também configurava ameaça ao sedã ítalo-mineiro. Ainda na fabricante italiana, o Fiat Tempra que está completando 30 anos era pioneiro na adoção de duplo circuito de freios em diagonal e também no uso de raio de rolagem negativo. Inédito no país era o uso de massa de poliuretano expandido dentro das colunas dianteiras e traseiras como meio de absorção de ruídos, bem como os limpadores de para-brisa nos quais apenas a borracha das palhetas era substituída quando necessário. Por dentro, o espaço interno era novamente um destaque, assim como notado no mercado europeu. A posição de dirigir ligeiramente elevada correspondia à tradição da marca, mas agora era auxiliada por regulagem de altura do volante de quatro raios e também no apoio lombar do encosto dos bancos dianteiros. Foto | Fiat/Divulgação - Fiat Tempra: 30 anos do sedã médio que fez sucesso no Brasil na década de 1990 Se não havia a opção de digital com no modelo italiano, uma série de itens de conforto e conveniência superava com folga esta ausência. Controle elétrico dos retrovisores, rádio/toca-fitas de fábrica (só não vinha com o K7 do R.E.M...) e travamento central das portas por interruptor no que se desarmava se uma delas estivesse mal fechada também eram novidades na marca. A versão topo de linha trazia consigo itens ainda mais refinados e peculiares. Apliques imitando madeira, retrovisor interno fotocrômico, iluminação no miolo da chave de ignição e no para-sol do ageiro e apoios de braço para o motorista e no centro do banco traseiro eram elementos notáveis na versão Ouro. Por fim, um must: no porta-luvas vinha uma lanterna removível que era energizada quando conectada ao acendedor de cigarros. Um gol quase feito, um chute para fora Debaixo do capô, outra herança do Regata: o histórico motor bialbero projetado por Aurelio Lampredi em meados dos anos 1960, mas ainda atual para aquele momento. Em outras versões, era um motor comprovadamente capaz: fora campeão mundial de rally tanto equipando o Fiat 131 Abarth quanto em o Lancia Delta Integrale em versão sobrealimentada. Foto | Fiat/Divulgação Características tais como duplo comando de válvulas, cabeçote de fluxo cruzado, câmaras de combustão hemisféricas e distribuidor acoplado ao cabeçote sem engrenagens eram escolhas técnicas superiores frente àquelas encontradas nos propulsores de seus concorrentes. Entretanto, estando pronta para fazer um gol de placa, a Fiat cometeu um erro que custaria uma fatia do mercado: a adoção de carburador em um segmento cada vez mais dominado por injeção eletrônica de combustível. Para piorar, o uso de catalisador seria necessário a partir do primeiro dia de 1992 visando o atendimento às normativas da fase 2 do PROCONVE (Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores). Tudo isso em um motor subquadrado de 2,0 litros (1995 cm³), com 84 mm de diâmetro dos cilindros e 90 cm de curso dos pistões. O resultado final? Apenas potência de 99 cv e torque de 16,4 m.kgf para um veículo com peso superior a 1.250 kg. Com isso, o desempenho ficou abaixo das expectativas — o Tempra acelerava de 0 a 100 km/h em 12,3 segundos, de acordo com a fábrica, marca modesta para o segmento. Foto | Fiat/Divulgação E tinha mais: por não utilizar a versão mais evoluída do motor 2.0 da grupo Fiat, a relação relação r/l desfavorável (0,31) causava aspereza de funcionamento. Enquanto isso, os modelos italianos utilizavam duas árvores de balanceamento na última geração daquele propulsor e que não fora empregado por aqui. Não obstante, as primeiras unidades do Tempra traziam consigo uma transmissão longa, mais adequada à manutenção de velocidades típicas de rodovias em viagens com maior conforto sonoro e economia. Entretanto, o cobertor é curto: tal escolha fazia com que o carro se mostrasse “preguiçoso” nas retomadas e em arrancadas com maior demanda de força. Felizmente, a fabricante rapidamente corrigiu esse aspecto instalando uma relação de diferencial 5% mais curta, que podia ser aplicada aos modelos já vendidos se o proprietário desejasse. Falando de transmissão, o Tempra apresentava notável evolução sobre os Fiat até então – que tinham justamente isso como ponto fraco - apresentando engates mais suaves e precisos do que Uno, 147 e seus derivados. Foto | Fiat/Divulgação - Fiat Tempra 30 anos: carroceria de duas portas fazia sucesso nos anos 90 A nova disposição interna das engrenagens acabava com o ruído ao engatar a primeira com o carro em movimento, que acompanhava a marca desde o primeiro 147. Inéditos no Brasil para um carro com motor e transmissão transversais eram as semiárvores de transmissão de mesmo comprimento, para melhor comportamento de direção em acelerações fortes. No contexto de seu lançamento, as publicações nacionais teceram diversos elogios para a dirigibilidade e, principalmente, pelo espaço e vivência interna. Mas, no campo do desempenho, as criticas eram contumazes: o desempenho fazia com que ele comesse poeira de Monza, Santana e Versailles. Foto | Fiat/Divulgação Algo deveria mudar. E inicialmente mudou, mas não da forma esperada. Em setembro de 1992 era apresentada a versão de duas portas do Tempra, uma exclusividade brasileira assim como jabuticaba e guaraná. Mas a fabricante italiana havia perdido o timing da história: se até os anos 1980 os sedãs de duas portas eram preferência nacional, tal tendência estava em franca decadência na década seguinte. O que era uma pena, uma vez que o desenho era bastante atraente e com poucas mudanças frente ao desenho original. Motor fraco e carroceria que não dizia nada a ninguém: onde é que a Fiat queria chegar? Para piorar, um nome e um número traziam arrepios aos engenheiros do fabricante italiano – algo superior a colocar ketchup na pizza. O nome era Omega, e o número era 200. Quer entender o que isso significava e o que a marca de Betim iria fazer a respeito? Confira em breve no Autos Segredos na parte 3 da história do Tempra que está completando 30 anos de lançamento no Brasil. Foto | Fiat/Divulgação (*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG